Love is hard
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- É muita dor pra engolir, pai.
Eu disse baixinho.
Ele estava morto há alguns
meses, e ainda não tinha passado como me disseram que ia passar, mas tudo bem,
porque não me deram uma data.
Meu pai era duro comigo, e
eu levei muitos anos para entender as várias vezes em que parecia que eu não
era o suficiente para ele.
Uma vez eu tinha ficado
com uma espinha de peixe atravessada na garganta, e ele me ajudou a tirar, mas
eu também tinha que fazer força para engolir, então ele gritou:
- Vai logo, força!

Mas a sensação foi rápida,
olhei para a minha vida, agora uma adulta, e muita coisa tinha mudado, muita.
Eu aprendi muito sobre mim mesma, aprendi que eu era do tipo de pessoa que tinha esse
desejo cravado por dentro de que só o essencial existisse, se pudéssemos só
viver de amor... A pior parte era que eu sempre achei que podemos, não
conseguia entender, aceitar, por que não era possível. Isso vivia me magoando.
Eu sei o que meu pai diria:
- As coisas não são assim. A vida é dura.
Mas ele não sabia que eu tinha
total consciência da dureza da vida. E quem disse que o amor não é duro? Você
tem que ser tão corajoso, por amor.
Ele também dizia muito,
que por conseqüência eu tinha que ser dura, para sobreviver; nunca funcionou,
pai.
Em vários tons diferentes
ele falava de como eu não teria sempre meus pais por perto, que ele não poderia
sempre cuidar de mim.
- Eu não quero ser dura, pai.
Eu disse baixinho, de
novo. Era como se ele ainda estivesse ali.
O único sonho que eu
tivera com ele depois de sua morte tinha sido estranho, estávamos distantes,
nos estranhando, mas eu podia sentir o grande amor de pai e filha apertadinho
ali, dentro do conflito.
- Papai, o que aconteceu?
Perguntei, sentindo a
ardência no rosto que vem antes do pranto. Mordi meus lábios. Eu sei o que
aconteceu, ninguém sabia melhor do que eu. Papai perdeu mamãe porque era um
homem fechado, depois ele me perdeu pelo mesmo motivo. Eu demorei a entender
por que ele era duro comigo e também demorei a ver por que ao mesmo tempo em
que eu me reaproximava dele, eu me distanciava.
Quando vi isso, dei meu máximo para melhorar as coisas. Meu máximo não
era tão bom quanto o ideal que eu tinha na minha mente, na verdade, não chegou
nem perto de ser. Meu pai esperava muito de mim. Eu esperava muito de mim.
Então eu entendi que a dor
uma vez engolida, ainda fica dentro de você. O que estava demorando não era o
cessar da dor, mas sim o ato de incorporar a nova dor em mim e viver com ela.
Quando um garotinho deixou
sua bola de futebol rolar até meu pé, eu estava implorando, ali quieta, que o
mundo não exigisse de mim, perder aquilo que eu tinha na idade daquele
garotinho, aquilo que eu ainda mantinha dentro de mim, uma espécie de inocência
complicada de explicar, porque depois de tanta coisa, eu ainda a tinha, por
isso eu não podia ser dura, não era possível.
Não que eu não tivesse
tentado mudar, eu tentei, porque é errado ser escravo de si mesmo. Mas no fim,
é certo ser fiel a si mesmo, e eu terminei minha tentativa satisfeita por eu
não ser capaz de fugir do meu espírito. Eu estava há alguns anos bem segura do
que era isso, meu espírito, Eu. Aí ele morreu, e eu tive dias de gritos e
lágrimas, de refletir demais, tudo para entender que a tristeza estava
confundindo aquela minha certeza do que sou eu.
E lá estava eu, fazendo de
novo, pensando demais, ao lado da minha bicicleta, num lugar agradável aonde eu
devia estar me distraindo.
- Então é isso? Você está vivendo sua vida,
do melhor jeito que consegue, um dia, você perde alguém que ama, e perde a cabeça,
sai dos trilhos, fica desequilibrada, e começa a falar sozinha... no meio de um
parque.
Uma mulher que passava por
mim me olhou estranho, me desaprovando ao notar que eu falava sozinha. Eu subi
na minha bicicleta, coloquei os fones do meu celular, You’ve got to hide your love away
começou a tocar e eu saí dali. O vento batia no meu cabelo, avançava
contra meu rosto, e eu estava mais sozinha, eu sabia que tinha minha mãe e
outras pessoas que me amavam, mas não era o suficiente.
A pequena garota que ficava
se debatendo, como um peixinho fora da quantidade de água que realmente
necessitava.
Nada tinha mudado.
- Michelle Ribeiro
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